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Almir França: "A gente vive uma moda muito injusta socialmente"
Reportagem Seriada

Almir França: "A gente vive uma moda muito injusta socialmente"

Causar impacto, dentro e fora das passarelas. Eis o que move Almir França. Em busca de soluções imediatas para sua comunidade, o estilista usa a moda como ferramenta de transformação econômica, social e ambiental

Almir França: "A gente vive uma moda muito injusta socialmente"

Causar impacto, dentro e fora das passarelas. Eis o que move Almir França. Em busca de soluções imediatas para sua comunidade, o estilista usa a moda como ferramenta de transformação econômica, social e ambiental
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O sotaque entrega, ainda nas primeiras palavras, a origem de Almir França. O carioca, criado no Complexo da Maré, tem 64 anos e quase meio século de atuação em várias frentes da moda.

É dele o projeto e a direção da Ecomoda, escola sustentável que ganhou vida em 2010, após parceria com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Rio de Janeiro. A ação nasceu com o propósito de utilizar uma metodologia de reaproveitamento de resíduo têxtil.

Almir é um defensor do autoral, do fazer manual e, principalmente, de uma moda de reúso e que não gera lixo. O que para muitos pode ser uma utopia, para ele é real - e uma realidade que impacta na vida de dezenas de pessoas.

Almir França está à frente do projeto Ecomoda. A oficina de customização, moda e sustentabilidade encerrou a Semana da Diversidade da empresa social Viva Rio, no Rio de Janeiro (Foto: Pedro Conforte Viva Rio/Divulgação)
Foto: Pedro Conforte Viva Rio/Divulgação Almir França está à frente do projeto Ecomoda. A oficina de customização, moda e sustentabilidade encerrou a Semana da Diversidade da empresa social Viva Rio, no Rio de Janeiro

O estilista autodidata acredita no poder da educação, na força econômica e no potencial transformador dos negócios de moda, independentemente do porte e da etapa de atuação na cadeia.

Para ele, o fazer moda vai muito além do fazer roupa, assim como a criação está bem acima da fabricação. E foi essa distorção de conceitos que, segundo Almir, nos levou para um abismo - ou para pilhas intermináveis de roupas descartadas.

Em conversa com O POVO, o estilista graduado em Pedagogia e em Belas-Artes se divide entre salas de aula e máquinas de costura, sempre com um olhar político. Como educador, promove a inclusão e dá visibilidade, voz e caminhos para geração de renda a mulheres periféricas e mulheres travestis, residentes em comunidades cariocas. 

Já diante da máquina de costura, concentra seu olhar em dois momentos: no passado, com base na sua própria história; e no futuro, a partir de um viés pessoal, onde acha necessária a redução da produção de novas peças, ou com o pensamento coletivo, proporcionando soluções imediatas para questões atuais.

A coleção apresentada no DFB Festival, em parceira com a Enel, era feita a partir de uniformes.(Foto: Roberta Braga e Thais Parahyba/Divulgação)
Foto: Roberta Braga e Thais Parahyba/Divulgação A coleção apresentada no DFB Festival, em parceira com a Enel, era feita a partir de uniformes.

Independentemente do caminho seguido, a atenção e o cuidado com o meio ambiente sempre estão em pauta. Quando as peças ganham bordados, as linhas utilizadas são de doação de resíduos, fios que vêm das confecções e das fábricas.

Foi na passarela do DFB Festival, em julho deste ano, que Almir apresentou o seu último projeto: a coleção Energia, desenvolvida a partir de ressignificação dos uniformes de trabalhadores da empresa Enel.

“Isso é o que eu acredito, é o que eu gosto de fazer. Eu gosto de fazer moda, mas eu gosto de fazer com coisas que realmente se justifiquem no tempo e espaço”, conta.

E quando o assunto é tendência de moda, Almir é preciso: elas não existem mais. Em paralelo, trazendo pontos de vista de consumidor, ora de produtor de moda, o discurso sempre chega a um ponto comum, a necessidade de mudanças políticas, com aportes que vão além do trabalho e da renda. 

“A gente já deveria estar dentro das políticas das pastas da cultura, para que a gente pudesse acessar todo esse processo de direito na hora de criar, de fazer”, afirma.

O POVO - Como começou a sua história com a moda?

Almir França - A minha história começa com a necessidade de sobrevivência, mesmo. Perdi minha mãe aos 16 anos, morando em um local que hoje é uma grande periferia, uma grande favela, que é a Maré, então tive que criar seis irmãos com essa idade.

Eu já costurava desde pequeno porque aprendi com uma tia que fazia roupas. A gente não podia mais comprar, então eu fazia roupas para os meus irmãos a partir de lençóis que minha mãe deixou, porque não tinha dinheiro para comprar tecido.

Eu comecei muito cedo, intuitivamente, a experimentar a linguagem do reúso, que é o “R” que eu acredito. Meu pai era do Rio Grande do Norte, convivi muito tempo com o universo do Nordeste dentro da nossa casa. Então aprendi com uma tia a fazer bolinho de arroz com um ovo apenas.

E a costura tem um pouco disso, é um bolinho de arroz. Trabalhei em grandes fábricas aqui do Rio, como empregado. Aos 14 anos, fui trabalhar na Nova América de Tecidos, que era uma grande fábrica e que não existe mais. Depois trabalhei muitos anos no comércio, de vendedor.

Então minha formação de fazer roupa veio deste processo muito autodidata.

Almir França está à frente do projeto Ecomoda, que nasceu com o propósito de utilizar uma metodologia de reaproveitamento de resíduo têxtil.(Foto: Rubem da Silva/Divulgação)
Foto: Rubem da Silva/Divulgação Almir França está à frente do projeto Ecomoda, que nasceu com o propósito de utilizar uma metodologia de reaproveitamento de resíduo têxtil.

OP - E como você começou a trabalhar com a moda autoral, que carregasse a sua assinatura?

Almir - Desde muito cedo, trabalhando para os outros, eu sempre sonhei com uma marca autoral, em ter o meu varejo. Sempre quis fazer roupa e ver essa roupa nos corpos.

Então, muito cedo, fui ser assistente de figurino. As primeiras roupas de figurino que eu fiz foram para musicais de travestis na década de 1970. Eu vesti pessoas como Rogéria e Jane di Castro. Foram elas que me deram acesso a esse teatro e a chegar a esse lugar.

Mas sempre buscando essas fibras que não estavam no mercado. Imagina que naquela época havia uma determinação da tendência dessas fibras, texturas e cartelas de cores. Mas por que eu fazia isso? Porque me daria mais possibilidades.

Era muito mais interessante eu chegar numa grande loja e procurar quais os tecidos que estavam lá no estoque, que não estavam vendendo, fora da estação e esses tecidos me possibilitarem um novo tingimento, bordado, textura, do que pegar um tecido que tava em tendência e concorrer com o mercado que era muito maior do que eu mesmo, do que o meu próprio varejo.

Então foi sobrevivência, não foi nenhum processo criativo, não tinha nenhum processo genial. Foi o bolinho de arroz. E isso também me provocava enquanto criador, com novas possibilidades.

É lógico que eu paguei um preço com isso, você é altamente discriminado por uma série de razões: meu pessoal era formado por pessoas da periferia, pessoas discriminadas. Se hoje a indústria da moda é extremamente ditadora, imagina há 40 anos.

Para Almir França, a escola de moda deve ser democrática, acessível e realista(Foto: Pedro Conforte Viva Rio/Divulgação)
Foto: Pedro Conforte Viva Rio/Divulgação Para Almir França, a escola de moda deve ser democrática, acessível e realista

OP - Você começou a fazer moda muito cedo. Quais transformações marcaram as últimas décadas?

Almir - Eu venho de uma época em que na moda, no Brasil e no mundo, eram pensadas as coleções de outono/inverno, primavera/verão, muito a partir das tendências dos próprios tecidos, das fibras. Então, você tinha uma apresentação sobre os tecidos que seriam usados durante aquelas coleções.

Não era eu, estilista, quem determinava o rosa ou o verde, era a indústria do tecido. E você conseguia trabalhar o ano inteiro em uma tendência. Com a internet, isso acabou. Você não tem mais tendência.

Eu vejo as pessoas dizerem “ah, vamos apresentar nossa coleção de inverno”. Como assim, gente, coleção de inverno? Tudo isso são amarras, inclusive, para você poder fazer, fazer, fazer e depois te levar à falência.

OP - A sua relação com a educação e com a arte é muito próxima. Como ela começou?

Almir - Eu fui para academia, porque eu queria entender algumas coisas. Minha primeira formação foi a Pedagogia e depois eu fui fazer Belas-Artes. Eu acredito na arte como transformadora. E é uma ferramenta importante hoje para a gente entender essa roupa.

Porque não dá mais para fazer roupa pensando apenas fora do corpo. Você tem que pensar que a roupa é uma segunda pele. Ela é uma construção de identidade e ela é responsável, inclusive, hoje, por muitos direitos, muitos acessos aos direitos.

É por isso que nosso trabalho atualmente é muito voltado para os uniformes de trabalhadores. A quantidade de roupas usadas e que são descartadas nos nossos aterros é surreal. Então, a gente vai ter que entender esse trajeto de como essa roupa chega ao aterro, como ela é descartada.

O resíduo têxtil não está dentro da política de separação de resíduos no Brasil, nós só temos quatro itens: ferro, plástico, metal e vidro. Isso é muito louco. E como é que se fala tanto dessa contaminação da roupa?

Então por que isso não está dentro de uma política de separação? Porque somos muito “bonzinhos”, pegamos nossas roupas e doamos para os mais necessitados.

Roupas e acessórios que seriam descartados se transformam nas mãos de Almir França e seus alunos.(Foto: MARIO MARQUES/Divulgação)
Foto: MARIO MARQUES/Divulgação Roupas e acessórios que seriam descartados se transformam nas mãos de Almir França e seus alunos.

Tem também quem faz de pano de chão, joga fora. Mas esse descarte, de jogar fora e doar para uma igreja é a mesma coisa, você só freou o processo do caminho dessa roupa até esse aterro. E isso é uma questão muito séria.

OP - Como começou o seu projeto de com uniformes de trabalhadores? Qual é o impacto dessa vestimenta para o meio ambiente?

Almir - Quando você pega os dados sobre esse quantitativo de roupa usada descartada existe uma informação ainda mais alarmante, que são os uniformes dos trabalhadores, que passam 10 horas do dia com essa roupa.

Esses uniformes de segurança são feitos de materiais extremamente danosos, que são as microfibras, os oxford etc, fibras já condenadas pela Organização Mundial de Saúde nos corpos humanos, então temos um entrave.

Por ser um problema ambiental, ele é um problema de direitos humanos. E você não vai resolver questões de direitos humanos se você não pensar primeiro nessa história.

Do que adianta criar um curso social para as mulheres lá na favela, para elas aprenderem a costurar, mas a costurar o quê? Com o quê? Para ir a qual mercado? É muito injusto esse processo.

Então, a gente vive uma moda muito injusta socialmente. E isso eu já venho apontando há algum tempo. Eu não sou salvador da pátria e nem quero ser, mas a gente precisa pensar sobre isso, porque eu sou sobrevivente desse processo. Eu digo que a moda me salvou e ela me salvou para que eu fizesse esse trabalho.

Desfile de peças sustentáveis com modelos da Escola de DIVINES. O projeto integra o Ecomoda, de Almir França(Foto: Pedro Conforte - Viva Rio/Divulgação)
Foto: Pedro Conforte - Viva Rio/Divulgação Desfile de peças sustentáveis com modelos da Escola de DIVINES. O projeto integra o Ecomoda, de Almir França

OP - Você fala muito da relação entre moda e política. Qual e como essa relação acontece?

Almir - A moda não está dentro de nenhuma política pública, efetivamente, a moda enquanto conteúdo é tratada no máximo dentro do trabalho e renda. Quando a gente já deveria estar dentro das políticas das pastas da cultura, para que a gente pudesse acessar todo esse processo de direito na hora de criar, de fazer.

Tenho 64 anos, quase 50 anos de vida profissional, registrado em carteira. Então eu vi vários processos transformadores desta indústria e no Rio de Janeiro, que foi a grande capital da moda, eu vivi muito nesse processo.

Então, isso foi importante para minha formação. Digo sempre que eu sou um sobrevivente nesse processo. Vi muitos amigos começarem e acabarem, vi muitas marcas começarem e acabarem. Por isso que eu acho que a gente hoje tem uma tarefa, já que a gente sobreviveu a isso tudo.

OP - Existe algum momento na moda brasileira que você acredita ter sido divisor de águas?

Almir - A gente teve, na década de 1990, um grande movimento que eu considero o mais importante da história da moda brasileira, que foi o Mercado Mundo Mix. Um projeto que começou em São Paulo, depois viajou o Brasil inteiro. Foram dez anos de movimento.

Aí nasceram todos os criadores que você pode falar da moda de 1990 para cá, Alexandre Herchcovitch, Walter Rodrigues, Glória Coelho, esse povo todo.

Então eu tava ali também, carregando minhas bolsas e vendendo… Depois aqui no Rio de Janeiro a gente teve a Feira Hype, que era um evento também gigantesco de varejo, era o Mercado Mundo Mix mais democrático.

Sustentabilidade e design no desfile do DFB Festival(Foto: Roberta Braga e Thais Parahyba/Divulgação)
Foto: Roberta Braga e Thais Parahyba/Divulgação Sustentabilidade e design no desfile do DFB Festival

As feiras aconteciam de dois em dois meses ou uma vez por mês, só que você tinha que sobreviver um mês inteiro, então tudo que tinha de feira que você possa imaginar nesse eixo Rio, São Paulo e Belo Horizonte eu fiz para vender o meu varejo. Tive lojinhas, mas a academia foi me puxando.

OP - Quando a academia entrou na sua vida?

Almir - Sempre dei aulas e sempre me fascinou o magistério. E aí vieram as possibilidades de trabalhar com o magistério periférico. Eu sempre sonhei com uma escola de moda dentro de uma favela, sempre acreditei que era possível a favela assumir esse protagonismo.

Sempre achei um absurdo a indústria da moda ser toda feita por pessoas que estão na periferia e, na verdade, não serem autoras de nada.

É muito triste aquela história de que a gente faz um desfile, no final eu entro e recebo todos os aplausos sozinho. Como se só eu tivesse feito aquilo tudo.

Em 2000, o Governo do Estado (do Rio de Janeiro) resolveu montar uma escola com mulheres, mães de jovens que ficam na rua e que ficam em casa, que são dependentes químicas, que sofrem violência doméstica, etc.

Então, eles me convidaram para aplicar uma escola de moda para essas mulheres. Era uma coisa muito embrionária, dependia de muitos aportes, inclusive do governo, que é muito precário, mas me entreguei àquilo ali.

E foi a primeira vez que eu experimentei essa moda alternativa, na prática, como é ensinar essa moda para essas mulheres sem máquina de costura, sem material didático. Não tinha uma sala, não tinha um atelier, mas eu vi ali essa possibilidade. E foi uma forma também de discutir isso com o governo.

A Ecomoda atua nas comunidades do Rio de Janeiro(Foto: Pedro Conforte - Viva Rio/Divulgação)
Foto: Pedro Conforte - Viva Rio/Divulgação A Ecomoda atua nas comunidades do Rio de Janeiro

OP - Foi a partir dessa experiência que nasceu a Ecomoda Moda?

Almir - Isso. A partir daquilo, a gente foi embrionando o que é a Ecomoda Moda, essa escola de moda sustentável, que eu já não gosto mais dessa palavra "sustentável". Porque ela é arrogante, é determinante e todo mundo passa a usar e, quando você vai ver, não tem nada de sustentável.

Eu tenho alunas em uma comunidade da Rocinha, onde a gente tem um polo lá da escola, que são mulheres de 60 e poucos anos. Elas criaram a sua família, criaram os seus filhos e hoje criam seus netos e sustentam todo seu entorno em cima de uma máquina de costura. Mulheres que não sabem ler nem escrever.

Então, de que moda a gente está falando? De que academia de moda a gente está falando? Porque tudo isso tem a ver com o processo. Eu sempre sonhei com uma escola de moda democrática, “paulo freiriana”, de verdade.

Se eu aprendi olhando, se mulheres aprenderam olhando suas mães e suas avós, por que eu preciso e vou exigir que uma jovem na favela tem que aprender modelagem a partir de uma equação matemática?

Não dá para a gente querer discutir educação a partir de uma filosofia de Platão e Sócrates. Não dá mais para moda ser ditadora a partir de um caderno de moda, apenas.

É bacana você defender a ideia do patchwork, da renda, do bordado, mas quando você vê os editoriais de moda, são as fibras que vieram não sei de onde, feita com máquina de 10 fios.

Almir França começou a costurar por necessidade. Após a mãe falecer, era ele quem fazia suas roupas e de seus irmãos.(Foto: Rubem da Silva/Divulgação)
Foto: Rubem da Silva/Divulgação Almir França começou a costurar por necessidade. Após a mãe falecer, era ele quem fazia suas roupas e de seus irmãos.

OP - Você também trabalha com mulheres transsexuais. Pode falar sobre esse projeto?

Almir - A Ecomoda Moda foi criando braços e nasceu a Escola de Divines, inicialmente pensada só para mulheres trans. Eu tenho tido bastante abraços, não só da mídia, mas também das empresas.

Para ela sobreviver, precisamos de muita matéria-prima, desse material doado, de resíduos. E eu precisava também, além de ensinar a essas mulheres esse ofício, criar com elas um produto imediato, que elas conseguissem, desde já, uma renda.

E não podia ser uma bolsa para disputar com a senhorinha que está nos coletivos de artesanato. Então, a gente foi para o uniforme das empresas. Hoje essas empresas doam esse uniforme, e aí tem essa política reversa.

A gente tem que saber entender de política, hoje, na moda, quem não entende de política, esquece. Você não pode ser apenas um designer. E tem que ver com qual política você consegue dialogar, qual política você consegue acessar.

E aí tem a política reversa, ou seja, esse lixo dessas empresas, eles têm que pagar, porque existe hoje um controle. As empresas acima de 60 m² têm que ter certificação ambiental.

E você age no seu entorno, na questão ambiental, com projetos sociais que minimizam o impacto da sua fábrica naquela região. Então a indústria me doa esse uniforme, a gente desenvolve um produto imediato. 

OP - E qual é o destino deste produto?

Almir - A gente negocia para que essa mesma empresa compre esse uniforme de volta, reformado e com uma nova finalidade. Eu preciso inovar o tempo inteiro. Eu digo para os meus alunos na faculdade irem para a lata de lixo, porque o negócio está lá, não está nas grandes marcas.

As indústrias compram de volta esse uniforme e a gente começa a fazer uma economia circular, entendendo todo o protocolo da chegada, do descarte. Porque hoje a empresa precisa incinerar esse uniforme por várias razões, inclusive pela circulação da marca que está nele.

E aí o descarte às vezes custa o mesmo preço do próprio uniforme. Há descarte todos os dias, porque você troca de funcionário todos os dias. E como eles são EPIs, eles não podem ficar por mais de 30 dias no corpo daquele trabalhador. Então, acaba sendo um negócio interessante.

Modelo Juan Augusto veste criações de Almir França(Foto: Mário Marques / Divulgação)
Foto: Mário Marques / Divulgação Modelo Juan Augusto veste criações de Almir França


OP - De uns anos para cá, muito se fala sobre a relação entre a indústria da moda e o meio ambiente. Como você enxerga esses impactos e o futuro desse setor?

Almir - A moda é uma grande indústria no Brasil, que representa o segundo maior mercado de empregabilidade, mas ela também representa o segundo mercado de contaminação do meio ambiente e isso é muito sério, porque não é só uma questão ambiental.

Isso está muito atrelado às questões dos direitos do sujeito no tempo e espaço. E aí você começa a falar sobre os caminhos da moda. Eu nem sei mais se a moda vai continuar existindo, eu nem sei mais se vamos precisar de roupa.

Houve um caminho muito desencontrado nesse processo da indústria da moda. E aí como é que a gente vai lidar com essa segunda maior economia que gera empregos, com essa economia que é o primeiro emprego das mulheres no Brasil, já que 60% das mulheres começam pela indústria da moda? Eu estou falando de comércio, fabricação, toda a cadeia.

A gente vai ter que começar a entender algumas questões, todos nós. Principalmente quem faz roupa. Porque tem uma diferença entre fazer moda e fazer roupa. Tem uma diferença entre criar roupa e fabricar roupa. Essa foi a grande confusão. Por isso que a gente caiu nesse grande abismo.

OP - Você fala muito sobre reuso de materiais. Acredita que outros recursos, como brechós, também são viáveis do ponto de vista social e ambiental?

Almir - Eu acho muito bacana essa linguagem dos brechós. Durante a pandemia, isso cresceu estupidamente, mais por uma questão de sobrevivência.

Mas isso também é um tiro no pé, a gente tem que se preparar, porque daqui a pouco a gente vai ter um quantitativo muito grande dessas roupas nos nossos aterros, sem muita definição, porque ninguém está preocupado com isso.

A outra maldade é que esses brechós viraram uma alternativa para os nossos alunos na faculdade. Esses brechós, na verdade, foram criados como sobrevivência de uma população que está completamente invisibilizada.

É outra injustiça social. Esse é o cuidado que a gente tem que ter. E não estou falando isso como sujeito defensor dos direitos humanos. Estou falando do ponto de vista econômico, de um estado capital. O tal do upcycling. Ele foi criado para resolver as coleções encalhadas das marcas, isso não é uma cultura do meio ambiente.

Almir França soma quase meio século de trabalho em várias vertentes da moda(Foto: Rubem da Silva / Divulgação)
Foto: Rubem da Silva / Divulgação Almir França soma quase meio século de trabalho em várias vertentes da moda

OP - Durante muito tempo a roupa exerceu um papel social grande. Você ainda acredita nessa representatividade?

Almir - Sim, a roupa ainda exerce esse papel. É ela quem faz essa primeira leitura da nossa identidade. Você vai observar que todos os conflitos sociais começam pela roupa. Então, a indústria da moda, a ciência da moda precisa aprender isso o quanto antes.

Senão a gente vai ficar aqui fazendo desfiles, editoriais bacaninhas, lindos, mas que no final você não vende e as pessoas consomem outra coisa.

Isso de ser ditador, de precisar de determinado corpo para se usar, foi e é um dos maiores sofrimentos das mulheres no Brasil. Isso é muito sério. Aquela roupa padrão, ditatorial, igual para todos, não veste mais o público atual.

Durante muito tempo, a moda foi muito rasa. A gente vivia bem, obrigado. A gente vendia muito, por isso foi a segunda maior economia. Tanto que nenhum estilista precisou participar de edital público para fazer a sua coleção.

E hoje, sem editais, você não faz uma semana de moda. Porque mesmo as empresas que participam, é com isenção de impostos, usando (lei) Rouanet. E para entrar em uma semana de moda dessas você tem que investir milhões para estar nos editoriais e entre blogueiros, porque senão depois você não vai vender aquilo.

Modelo Juan Augusto veste criações de Almir França(Foto: Mário Marques / Divulgação)
Foto: Mário Marques / Divulgação Modelo Juan Augusto veste criações de Almir França

Durante muito tempo, no final a gente vendia. Hoje não é mais isso. Antigamente, os lojistas vinham para o Rio, São Paulo, para comprar as peças. E hoje em dia não tem mais isso. Tem internet, tem produtores locais produzindo coisas interessantíssimas.

Não dá para você ter uma ditadura de roupa em um país como o nosso como já teve no passado. Hoje é impossível isso, não tem como.

OP - Quais mudanças você enxerga como urgentes no mercado da moda?

Almir -  O meu sonho de consumo hoje é o “não à máquina”. Isso é uma ideologia do Almir cidadão, sujeito. Mas eu tenho que entender que há política, que há um processo e que tem milhares de pessoas que dependem disso e que vão depender muito ainda.

Mas a gente já pode trabalhar isso, mudando a metodologia da academia da moda. Se faz urgente a alteração dessa academia. Estou falando de uma educação mais democrática, até porque o mercado exige outras coisas.

Por exemplo, o que é tendência hoje de moda? São corpos diversos, são gêneros diversos e são ideias diversas. Então você pergunta: para quem eu vou fazer roupa hoje, se a gente tem uma sopinha de letras: LGBTQUIAP…? O “h” (heterossexual) já foi, a gente não consegue mais trabalhar em um discurso binário.

O grande desafio hoje é democratizar a educação formal, e aí democratizar essa formação também da moda. E não estou falando de cursinho de seis meses, para simplificar o conteúdo. Eu quero falar sobre tudo, inclusive sobre a matemática desse corpo.

OP - É um ponto que vai além da estética, do visual?

Almir - Isso. Não é mais um discurso estético, por estética. Quando você fala de moda, você não pode falar sobre tendência. Isso já foi. E estou falando de capitalismo, porque é gasto e ganho.

Eu gosto muito da moda japonesa. Historicamente, eles sempre trabalharam com essa ideia geométrica, que você já tem que ter um aproveitamento total de tecido. Quando você pega as pesquisas sobre resíduos das indústrias têxteis do Japão, eles são infinitamente menores do que as nossas, justamente por isso.

E quando você estuda moda de grandes nomes, você já vê eles apontando para isso. O marco de Yves Saint Laurent é quando ele libera os corpos com os trapézios, que você gasta exatamente 1,40m de largura de um tecido, então você não desperdiça e você democratiza o corpo dessa mulher.

E estou falando de 50, 60 anos atrás. Então, já passou o tempo da gente fazer isso. Se a gente quer falar de tendência, então eu digo que essa será a tendência. Eu preciso ter na minha marca, na minha loja peças que vistam do 38 ao 54. Que vista baixo e alto, masculino e feminino. 

 

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