A convivência com as intempéries do clima sempre foi um desafio para o Ceará, que possui mais de 90% de seu território inserido na área de influência do semiárido. Para contornar esse quadro, a ampliação da infraestrutura de segurança hídrica tem sido feita, da transposição do Rio São Francisco ao projeto da Usina de Dessalinização (Dessal).
Essa construção de infraestrutura, no entanto, envolve o encarecimento dos custos. De acordo com estudo do do Centro Estratégico de Excelência em Política de Águas e Secas (Cepas) da Universidade Federal do Ceará (UFC), o custo da água dessalinizada tende a ser cinco vezes mais caro ao consumidor do que a da transposição.
No Ceará, existem esforços históricos no sentido de criar uma estrutura de resguardo para períodos de seca desde o período imperial no Brasil, com o início da construção do Açude do Cedro, em 1882, a pedido do imperador Dom Pedro II.
No século XX, tivemos a introdução do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs) e a construção do Castanhão, maior reservatório de água doce para múltiplos usos da América Latina, com mais de 6,7 bilhões de metros cúbicos (m³) de capacidade.
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Ainda assim, os períodos de seca eram duros para o Ceará, inclusive com mortes e milhares de retirantes do Interior rumando à Capital, como registros de 1877, 1915 e 1932.
Na Seca do 15, cerca de 120 mil pessoas foram obrigadas a se deslocar, migrando do Ceará para a Amazônia e outras 68 mil para outras partes do Brasil. Foram nessas épocas de crise que foram criados campos de concentração, também chamados de "currais humanos", para evitar que os retirantes chegassem a Fortaleza.
Mais recentemente, os investimentos em projetos de garantia da segurança hídrica do Estado passaram por uma revisão e incremento, sendo o principal deles a transposição do São Francisco, com eixos de transferência das águas para o Cariri e Castanhão.
Com recursos do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), também estão previstos R$ 12,9 bilhões para obras de infraestrutura hídrica.
Ao O POVO, o titular da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), Ramon Rodrigues, destaca que os investimentos fortalecem as comunidades frente aos desafios hídricos e climáticos, seja na Capital ou no sertão.
"Esse conjunto de ações resultou em uma expressiva estrutura institucional que permitiu que o Ceará enfrentasse grandes períodos de seca de forma resiliente. A chamada “gestão hídrica cearense” ganhou o País e hoje se tornou uma das mais exitosas experiências em execução", afirma.
Um exemplo material da evolução da infraestrutura de convivência com a seca é o período vivido entre 2018 e 2019. Em alguns lugares, como o Sertão Central, apesar dos baixos níveis de água disponíveis - temos atualmente casos de 15% de reserva de água em alguns reservatórios, a infraestrutura mitigou, em grande parte, o impacto das secas nesse período. Diferentemente de secas passadas, não houve perda de produção ou mortes.
Ainda dentro desse escopo, entra uma solução importada de outras regiões que convivem com períodos de seca, a dessalinização da água do mar.
A infraestrutura, já consolidada em países como Espanha e Israel, finalmente passa a ser adotada no Ceará com a construção da Dessal. Mas seria essa a melhor iniciativa em termos de custos e impactos?
Francisco de Assis Souza Filho, coordenador do Cepas/UFC e Cientista Chefe Recursos Hídricos do Governo do Ceará, destaca que o nível de custos vai mudar a partir da usina de dessalinização em Fortaleza.
A Dessal funcionaria como uma reserva de emergência para o abastecimento. A preço de 2018, antes da última seca, a demanda de abastecimento humano na Grande Fortaleza já atingia 12 m³/segundo, volume superior ao fornecimento projetado para a transposição do São Francisco, de 10 m³/segundo.
Assis lembra que foi nesse mesmo período que o Castanhão chegou a um estoque de apenas 2,5%. Isso acelerou a implementação do projeto de usina de dessalinização.
"A dessalinização, no caso de uma seca extrema, entraria como um recurso complementar, mas é uma água mais cara, custando entre R$ 3,50 e R$ 4 por metro cúbico, enquanto a água da transposição chega a R$ 0,70 por metro cúbico", explica.
Assis, no entanto, faz um alerta grave: A gestão de recursos hídricos para convivência com a seca vai além da oferta de água, mas também a forma como recursos tão preciosos são tratados.
As perdas na distribuição de água no Ceará foram de 44,38% em 2022, de acordo com o levantamento mais recente do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades. Em Fortaleza, por sua vez, 36,62% da água distribuída foram perdidas nesse mesmo período.
O coordenador ainda acrescenta que o nível de eficiência média das áreas irrigadas varia entre 40% e 60%, sendo necessário evoluir com soluções neste sentido que se somem a projetos em andamento, como o Malha D'Água, que visa reduzir as perdas por evaporação, por exemplo, de água em trânsito ao longo dos rios.
"Essas obras são fundamentais, mas elas não eliminam a seca; as secas continuarão, mas com impacto reduzido".
Os questionamentos em torno do nível de perdas e roubos de água no sistema de distribuição gerido pela Cagece no Ceará são motivo de preocupação.
Mais de 1/3 da água distribuída em Fortaleza foi perdida. Em nível estadual, quase metade da água tratada se perde na distribuição, segundo dados do SNIS, do Ministério das Cidades.
Conhecendo esses problemas, surge o questionamento: O que a companhia tem feito para solucionar essa questão, já que os esforços investidos para a oferta de água têm atingido a casa dos bilhões? - somente a Dessal tem valor de R$ 3 bilhões, entre construção e operação pelos próximos 30 anos.
Em resposta ao O POVO, a Cagece informa que tem executado o Programa de Combate às Perdas de Água na Distribuição, considerando as metas estabelecidas pelo Marco Legal do Saneamento Básico.
A área de atuação para prestação de serviços abrange os 152 municípios atendidos pela Cagece. Ao todo, são beneficiados 5,6 milhões de cearenses, com investimentos de R$ 2,4 bilhões.
Uma das estratégias da companhia é a setorização do abastecimento de água em Fortaleza, Maracanaú, Caucaia e Juazeiro do Norte, por meio da instalação de Distritos de Medição e Controle (DMCs).
Ações como substituição de tubulações velhas, implantação e modernização de controle operacional e contenção contra vazamentos estão sendo implementadas. "Com tecnologia de ponta, a companhia executa obras e serviços para combate às perdas, que incluem a instalação de dispositivos que monitoram as redes 24h por dia", afirma a Cagece.
A Cagece assinou um termo de cooperação técnico-científica junto da UFC e órgãos do setor hídrico do Estado que instituiu em maio deste ano o Cepas/UFC.
Na ocasião da assinatura, o presidente da companhia, Neuri Freitas, afirmou que o setor hídrico do Ceará já pode ser considerado uma referência nacional, mas é importante continuar na busca pela inovação.
Ele ainda disse que o grande ponto de discussão é a qualidade do tratamento, destacando que, para além dos esforços internos, o termo deve produzir bons frutos. "Infelizmente, hoje, a nossa água está com muita matéria orgânica, o que nos exige cada vez mais esforços para tratá-la. É preciso buscarmos conhecimento para desenvolver novas tecnologias de tratamento."
No âmbito do Cepas, a Cagece já possui dados que visam diminuir os custos com a injeção de água dessalinizada no sistema.
A operação da Dessal prevê a distribuição da água dessalinizada na rede a partir do reservatório no Morro Santa Terezinha, distante dois quilômetros do local da usina.
O coordenador do Cepas, Francisco de Assis de Sousa Filho, explica o modelo de otimização: "Para minimizar os custos, desenvolvemos um modelo de otimização junto à UFC, sob o programa Cientista Chefe, para definir o quanto de água dessalinizada deve ser injetado na rede, dependendo dos níveis dos reservatórios e da necessidade de Fortaleza".
A intenção desse modelo é tornar a vazão desse bem mais assertiva, de forma a potencializar o efeito e diminuir os custos extras ao consumidor final. Não há, no entanto, nenhum modelo mais detalhado sobre em quantos reais a conta de água e esgoto deve ser afetada com a entrada da Dessal em operação.
A previsão de que a Usina de Dessalinização (Dessal) gere 1 m³/segundo de água tratada a coloca como o principal projeto nacional do tipo. Atualmente, existem outros dois já implementados, um em Fernando de Noronha-PE (para abastecimento do arquipélago) e outro em Vitória-ES (de caráter industrial).
A maior dentre as usinas de dessalinização já implementadas possui o equivalente à metade da capacidade da Dessal.
Comparado às experiências internacionais consolidadas em países como Israel e Espanha, que contam com projetos com capacidade de dessalinizar 5 m³/segundo, 8 m³/segundo, a Dessal ainda é tímida em proporção.
O POVO conversou com o coordenador dos estudos e relatórios de impacto ambiental (EIA/Rima) da Dessal, o engenheiro Fábio Perdigão.
Especialista em Oceanografia Ambiental Costeira, ele destaca que o Ceará deve observar um crescimento na implementação de estruturas de dessalinização da água do mar, principalmente para atender a demanda da indústria.
Questionado sobre as preocupações em torno do projeto do ponto de vista ambiental, Fábio revela que a Semace ainda não se pronunciou pedindo novos estudos complementares.
Sobre a movimentação de desova de tartarugas na Praia do Futuro, diz que o maior impacto deve ocorrer no período em que haverá escavações para introdução de tubulações a 20 metros de profundidade. Depois disso, o acesso deve ser liberado para uso público da praia.
Sobre os rejeitos de sal, Fábio explica que os estudos apresentados à Semace comprovam que a força da corrente contribui para que a dispersão resulte em impacto praticamente zero na fauna e flora marinha a 35 metros de distância do ponto de lançamento.
"Depois que enterrarem as tubulações, o público ainda terá acesso normal à praia. A área de banho, surfe e lazer continuará a mesma, pois a tubulação só emerge a 300 metros no mar, numa profundidade de cinco metros. Ou seja, você pode tomar banho e surfar normalmente, sem qualquer interferência."
E continua: "Outro ponto importante é que não há bombeamento no mar; a água captada vai para o continente por gravidade, sem nenhum barulho ou equipamento no mar que possa prejudicar o meio ambiente".
Por ser a primeira planta de dessalinização do Brasil, a Dessal do Ceará possui características específicas que impõem desafios aos órgãos ambientais.
Será a primeira vez que uma planta de dessalinização desse porte será licenciada no Brasil, o que inspira a necessidade de estudos ambientais pioneiros para essa finalidade.
Além de ser um terreno de marinha, a região de oito hectares (ha) está situada em uma Área de Preservação Permanente (APP) e Zona de Proteção Ambiental (ZPA), a ZPA 2, já que é uma faixa de praia.
O local de instalação, na Praia do Futuro, ao mesmo tempo em que é um importante ponto de lazer e turismo, é também uma área de olhos d’água doces, restinga (Mata Atlântica) e berçário de reprodução de tartarugas marinhas.
Moradores do território também estão preocupados com a perda do acesso à praia e com os ruídos e rejeitos gerados pela usina.
O resíduo costuma ser o que sobra da filtragem de sal da água do mar — fragmentos que, se não forem devidamente diluídos e tratados, podem formar uma salmoura tóxica que polui os ecossistemas costeiros.
A Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) é o órgão responsável pelo licenciamento ambiental da obra, processo que divide-se em quatro etapas: licença prévia (LP), licença de instalação (LI), licença de operação (LO) e compensação ambiental.
A autarquia, que é vinculada à Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema/CE), informou ao O POVO que a licença de instalação foi emitida em junho de 2024 e, agora, o que tramita é o pedido de alteração com a mudança do local de implantação.
A superintendência tem ciência da existência do local de desova de tartarugas e afirma que “solicitará os dados atualizados complementares deste ponto”.
De acordo com o consórcio Águas de Fortaleza, o sistema de captação é desenhado para que não haja captura de animais marinhos.
Em relação aos possíveis impactos sonoros que uma obra dessa magnitude pode ter durante a fase de produção de água, os representantes afirmam que “todas as medidas de isolamento acústico e de uso de equipamentos de menor ruído serão tomadas de modo a não incomodar a população local e visitantes”. (Karyne Lane)
>>Bate-pronto
O biólogo e mestre em ecologia Gabriel Aguiar, vereador de Fortaleza conhecido como Gabriel Biologia (Psol), tem participado das reuniões do Grupo de Trabalho (GT) que discute a situação das famílias impactadas pela construção da Dessal e problematiza as questões ambientais.
Ao O POVO, ele critica a decisão de transferência do local de construção da Usina de Dessalinização. Acompanhe entrevista.
O POVO - De que forma o senhor avalia a transferência de local da Usina de Dessalinização (Dessal) na Praia do Futuro?
Gabriel Aguiar - Na verdade, o local anterior da usina não afetava os cabos submarinos, não mexeria com nenhuma casa e nem ecossistemas preservados. O lobby que se reunia em Brasília e fez alterar o local está preocupado é com o futuro, com novas instalações de novos cabos e outros empreendimentos futuros. Então, do ponto de vista social, o projeto anterior era muito melhor do que o atual.
Em relação aos impactos ambientais, o novo terreno é o pior possível. O novo terreno está integralmente em APP, em área de restinga que é protegida pela lei da mata atlântica do Código Florestal, área de reprodução de uma espécie ameaçada de extinção que são as tartarugas-marinhas, além de ser ZPA pelo Plano Diretor, o que significa que não deve existir construção nessa área.
OP - A Semace atualmente está avaliando e pode conceder licença ambiental para operação...
Gabriel - Hoje o projeto está sendo licenciado pela Semace, que licencia empreendimentos a nível de Estado, o que eu considero um grave erro. Quem deveria estar licenciando esse empreendimento deveria ser o Ibama*, já que a gente está falando de terreno de marinha e de uma planta industrial que parte dela é dentro do Oceano Atlântico, então foge da competência da Semace.
Sem falar que nós estamos falando de uma área de reprodução de uma espécie ameaçada de extinção, o que automaticamente deveria jogar a competência para o Ibama.
Se a gente fizer um paralelo com os cabos submarinos, quando eles vão ser instalados são licenciados pelo Ibama, então qual a lógica de a planta da Dessal não seguir o mesmo protocolo?
OP - O senhor acredita que a licença será negada?
Gabriel - Nós defendemos que a planta encontre uma alternativa locacional. A própria usina fica em risco por conta das dinâmicas das marés, da salinização, da dinâmica dos sedimentos, fluxo de areia que já soterra diversas construções como a própria areninha que havia ali. (Karyne Lane)
*O POVO entrou em contato e questionou o Ibama sobre a alegação do vereador de Fortaleza, Gabriel Aguiar. Como resposta, o órgão respondeu que não participará do trâmite de concessão das licenças e que a responsabilidade recai sobre os órgãos ambientais do Estado.
"Oie :) Aqui é Samuel Pimentel, repórter de Economia do O POVO e apresentador do programa de educação financeira Dei Valor. Qualquer comentário ou sugestão é só falar comigo. Quer curtir mais conteúdos? Vem navegar no OP+"
Série de reportagens mostra os desdobramentos da construção da Dessal, a maior planta de dessalinização da América Latina, na Praia do Futuro, em Fortaleza — com os impactos sociais, ambientais e econômicos desse projeto de grande porte anunciado para mitigar os impactos da escassez hídrica no Ceará