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Fraudes e mentiras da vida privada que desfalcam a Previdência do Estado
Reportagem Especial

Fraudes e mentiras da vida privada que desfalcam a Previdência do Estado

De 2022 a 2024, a Procuradoria Geral do Estado interrompeu mais de R$ 11,3 milhões de pagamentos a aposentados por invalidez e pensionistas que teriam usado informações fraudulentas para garantir o benefício. As histórias mostram situações forjadas por anos, até a irregularidade confirmada

Fraudes e mentiras da vida privada que desfalcam a Previdência do Estado

De 2022 a 2024, a Procuradoria Geral do Estado interrompeu mais de R$ 11,3 milhões de pagamentos a aposentados por invalidez e pensionistas que teriam usado informações fraudulentas para garantir o benefício. As histórias mostram situações forjadas por anos, até a irregularidade confirmada
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O Estado trabalha estratégias para tentar desfazer farsas da vida privada e mazelas inventadas que desfalcam o cofre da Previdência dos servidores do Ceará. O funcionário público morre e a família ou alguém quer se aproveitar e não perder a pensão. Ou o servidor "cria" ou indica uma doença como irreversível e limitadora para encerrar a carreira e se aposentar como inválido.

Nos últimos três anos completos, de 2022 a 2024, a gestão estadual conteve uma sangria anual de R$ 11,3 milhões em pagamentos previdenciários indevidos, cortados após a revisão dos benefícios como irregulares e a confirmação de fraudes. Uma economia que foi crescendo ano a ano, os casos cada vez mais sendo identificados.

Servidores que ganhavam valores modestos ou os mais diferenciados, de um salário mínimo ou de quase R$ 40 mil mensalmente entre os casos mais recentes. Que morreram ou adoeceram - simularam a invalidez - e alguém perto ou o próprio funcionário estatal forjaram a história por interesse. Para tentar manter o valor pingando transferido para suas contas. Mesmo com o ilícito sobre o luto ou as enfermidades inexistentes alegadas para o mesmo fim.

Sede da Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE) (Foto: Divulgação/Governo do Ceará)
Foto: Divulgação/Governo do Ceará Sede da Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE)

As mentiras contadas por documentos ou relatos colhidos no entorno dos que eram servidores mostram casamentos inventados, casos extraconjugais mal resolvidos, antigas separações reatadas no leito da morte, desamparos ou o golpe puro. A imaginação se mostra fértil em alguns dos processos administrativos, que são conduzidos pela Procuradoria Geral do Estado (PGE).

A filha “interditada” como esquizofrênica, beneficiária, recebia com a mãe a pensão de quase R$ 31 mil. E seguia trabalhando como assistente universitária. Além de interromper o pagamento, o Estado busca o ressarcimento do que foi pago e levar os fraudadores às responsabilidades penais.

O genro "casou" com a sogra, servidora do Tribunal de Justiça (TJCE), ela já em quadro degenerativo de demência, para ele e a filha dela, que ainda eram um casal, não perderem a pensão de R$ 32 mil. Os dois postaram fotos em redes sociais das viagens ao exterior, pagos como se ele fosse marido da mãe dela.

 

Diligências e fraudes 2023 e 2024

 

Teve o caso do médico que, antes de morrer, não assumiu devidamente os dois filhos com a antiga namorada de colégio (mesmo já casado). Nem garantiu o provento da ex-mulher e dos outros cinco filhos. A prole já chegava a sete. Do ambiente doméstico ao que foi levado à repartição, nem tudo era dito. Os "interessados" e "interessadas", termo usado nos processos, mantinham silêncios estratégicos para que o benefício não fosse perdido. 

O POVO teve acesso ao relatório numérico de fraudes rastreadas dos dois últimos anos. Foram pelo menos 426 casos de servidores de 18 órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário. Apenas no ano passado, a Comissão de Prevenção e Combate à Fraude Previdenciária, da PGE, realizou 218 diligências e constatou 63 pensões ou aposentadorias (29%) que não deveriam estar sendo pagas. Que foram cortadas após as análises, mas que antes disso já haviam usufruído de quantias significativas do cofre estadual.


Fraudes previdenciárias no Governo Estadual

 

Foram R$ 5.120.255,27 que deixaram de sangrar por ano somente no valor estancado em 2024. Em 2023 já haviam sido R$ 3.614.990,34 interrompidos dos benefícios incorretos. E outros R$ 2.586.770,29 de economia obtida em 2022. Por erros antigos. Mas que seguiram muitos anos sendo pagos até serem detectados. O corte acima de R$ 11 milhões passa a ser permanente, ou maior a partir de novos casos analisados.  

O POVO levantou 13 dessas histórias, mas os personagens não podem ser identificados. Há o sigilo da vida privada, mesmo mordendo a fatia pública. Em dois casos, os servidores morreram em 2012 e 2017, mas os processos para barrar as pensões ainda tramitavam em 2024. O dinheiro seguia sendo pago nesse tempo. Os dois haviam trabalhado na Secretaria da Fazenda, salários de R$ 20 mil e R$ 22 mil.

Rafael Machado Moraes, Procurador Geral do Estado(Foto: João Victor Costa/ Assessoria PGE-CE)
Foto: João Victor Costa/ Assessoria PGE-CE Rafael Machado Moraes, Procurador Geral do Estado

"São situações bem sensíveis que vêm gerando nos últimos anos um dano patrimonial grande. Nosso objetivo é evitar que benefícios previdenciários que geram impacto permanente para a previdência estadual, que na verdade é um patrimônio do Estado e também dos servidores, evitar que esses benefícios sejam concedidos indevidamente, a fim de que o Estado possa obviamente verter esses recursos indevidamente concedidos para as políticas públicas essenciais da população", detalha o procurador geral do Estado, Rafael Machado Moraes.

O trabalho de combate e prevenção às fraudes já existe desde 2016. Antes inserido como um núcleo, depois formatado como uma comissão permanente a partir de 2023. É hoje uma estrutura investigativa dentro do organograma da PGE. Moraes esclarece que a pauta "não é indeferir benefícios, mas conceder benefícios de forma adequada, correta e conforme a legislação".

Segundo ele, os cartórios e órgãos de segurança pública atuam em parceria nas análises. As pastas de padrão remuneratório mais elevado têm sido priorizadas. "Estamos fazendo uma espécie de auditoria em todos os benefícios concedidos anteriormente no Estado", mas não disse qual a dimensão desse trabalho.

 

 

O "namoro iludido" e a que casou com o avô do "ex" 

Ela se dizia a namorada do procurador aposentado e já tinha informações sobre o ótimo salário dele. O bruto passava dos R$ 30 mil. Seria um namoro ainda recente, de poucos meses, quando ele morreu em 2019. O servidor já tinha o diagnóstico de demência desde 2009, três anos depois de ficar viúvo. Mas a dita namorada fez por onde para se assumir formalmente como “esposa”, companheira. Apresentou papéis ao Estado para receber a pensão. Procurou o filho dele para que se manifestasse formalmente a favor disso.

Uma conta de luz dela teria sido transferida para o nome dele. Queria provar a relação estável. Mas ela nunca tinha sido vista pelo caseiro do sítio, local onde o patrão convalesceu de Alzheimer nos seus três últimos anos de vida. A interessada na pensão não ia lá. Era assistido somente por cuidadoras. O empregado chegou a chamar a relação de “um namoro iludido”. O processo administrativo na PGE durou pelo menos quatro anos até ser cortado. Simbolicamente, ela foi vista no enterro dele com uma coroa de flores. Depois, não mais.

Segundo a Fundação de Previdência Social do Estado do Ceará (CearaPrev), há 60.128 servidores aposentados na administração estadual. 18 órgãos apresentaram irregularidades identificadas em benefícios(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Segundo a Fundação de Previdência Social do Estado do Ceará (CearaPrev), há 60.128 servidores aposentados na administração estadual. 18 órgãos apresentaram irregularidades identificadas em benefícios

É uma das histórias que (não) passaram na aferição da Procuradoria Geral do Estado (PGE) em 2023, no rastreamento de fraudes previdenciárias. A Comissão de Prevenção e Combate às Fraudes ouve vizinhos, parentes, as próprias partes interessadas, tenta fecho o cerco e ver as contradições de versões mal contadas. 

Segundo a Fundação de Previdência Social do Estado do Ceará (CearaPrev), há 60.128 servidores aposentados na administração estadual. Dos 18 órgãos com irregularidades identificadas em benefícios, a Polícia Militar (PMCE) e a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) tiveram o maior número de pagamentos interrompidos após ações e diligências.

Há muitos imbróglios que poderiam ser restritos aos casais, mas o dinheiro público envolvido justifica o esclarecimento para além das quatro paredes. O juiz que ganhava mais de R$ 33 mil nunca foi visto com a tal namorada frequentando seu apartamento na avenida Beira Mar. Portanto, nunca dividiram o mesmo teto. Mas, aos olhos da Previdência do Estado, ela já havia se apresentado como esposa e pensionista.

No maior dos salários (R$ 39.796), de benefícios barrados nos dois últimos anos, o auditor fiscal teve quatro filhos, dois com cada uma das ex-companheiras interessadas na pensão. Dois deles ainda crianças e dependentes de auxílios especiais por motivo de saúde. Ele morreu em 2021. Na reta final da vida, morava apenas com o filho mais velho, adulto. O caso tramitou até 2023 antes do pagamento ser encerrado.

A Prova de Vida periódica é dos mecanismos utilizados para a detecção de óbitos e de cessação automática de benefícios. É feita pelo aplicativo Cearáprev (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR A Prova de Vida periódica é dos mecanismos utilizados para a detecção de óbitos e de cessação automática de benefícios. É feita pelo aplicativo Cearáprev

O engenheiro que morreu em 2020, salário bruto de R$ 16.759, mantinha uma relação “que transparecia ser de namorados, não convivência marital”. Fora casado por mais de duas décadas, inclusive viúvo antes dessa, “até namorar com a interessada pensionista”. E esta só teria passado a dormir no apartamento dele quatro a cinco meses antes dele morrer, de um quadro avançado de câncer.

A irmã do servidor descreveu o surpreendente: após descobrir a doença, a “namorada” teria passado a pressionar pelo casamento. Teria tentado levar o ex-servidor até um cartório, mas não conseguiu. Ele já estava bem debilitado, usando cadeira de rodas e nem conseguindo mais assinar. Teria dito que não queria nenhum bem, mas fazia questão apenas da pensão. Do diagnóstico da doença à morte, foram apenas seis meses de diferença.

Inspeções do processo ainda aconteciam em meados de 2023, antes do pagamento ser cortado. O Sistema de Informações de Registro Civil (Sirc) e a implementação da Prova de Vida periódica estão entre os mecanismos utilizados para a detecção de óbitos e de cessação automática de benefícios, conforme esclarecimento da Cearaprev.

Um dos casos mais disfarçados foi o da “interessada” que se casou com o auditor fiscal que era avô do seu “ex-marido” - entre aspas, porque a separação teria sido adulterada para que ela fosse considerada como pensionista. Foi um dos benefícios mais duradouros, desde 2012, até ser desfeito, apenas em 2024. O último valor recebido foi acima de R$ 20 mil.

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