Pergunte para dez mulheres se elas já sofreram algum tipo de assédio sexual. Cerca de cinco delas dirão que sim, nos mais cotidianos momentos: na rua, no trabalho, em casa… No Ceará, das mulheres que enfrentaram processos como vítimas de crimes contra a dignidade sexual, o que inclui estupros e assédio sexual, 2.100 tiveram os casos procedentes pela justiça entre 2020 e agosto de 2024.
Elas representam uma pequena parcela das mulheres que seguiram em frente com as denúncias e conseguiram justiça. No mesmo período, 9.216 cearenses buscaram algum órgão para denunciar crimes sexuais, de acordo com daSecretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS/CE).
O número assusta, mas não chega perto da realidade: no Brasil, mesmo que metade da população feminina afirme já ter sofrido algum assédio, 45% não denunciam.
Apenas 14% vão à delegacia da mulher e 8,5% a uma delegacia comum. Os dados correspondem ao ano de 2023 e são da pesquisa Datafolha Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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“Na verdade, há uma diferença entre assédio e importunação”, explica a promotora de Justiça Lívia Rodrigues, coordenadora do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Ceará (Nuprom/MPCE). Enquanto a importunação sexual é violar a intimidade da vítima sem consentimento, o assédio sexual é fazer o mesmo, mas em um contexto de hierarquia, como no ambiente de trabalho.
“O que nós temos é um maior termômetro de importunação sexual, mas os casos de assédio são mais tímidos. Há uma subnotificação”, alerta a promotora. É dizer que, por mais alarmantes que sejam os dados sobre assédio (como é popularmente chamado), o cenário provavelmente é ainda pior. Mas por quê?
O Brasil, por exemplo, é referência mundial em legislação contra a violência de gênero com a Lei Maria da Penha. Mesmo que ainda falte o cumprimento integral da lei, como pontua a promotora, a instauração dela influenciou positivamente o cenário brasileiro. “Você já percebe as pessoas com mais cuidado e medo (de cometer o crime de violência contra a mulher)”, analisa Lívia.
“O que falta, às vezes, é articulação entre os órgãos de saúde, de segurança, de educação (para o atendimento da vítima)”, comenta a promotora, citando o projeto Rede Mulher do MPCE, focado em aprimorar o fluxo de atendimento dos órgãos públicos às denunciantes e vítimas. No entanto, isso é apenas uma resposta ao problema. A pergunta é: por quê o assédio não cessa?
“Esse é um tipo de violência que está em todos os contextos, não tem padrão”, reflete. Por mais que a linha repressiva seja crucial, o combate ao assédio gera frutos mesmo na educação. Por um lado, a instrução permanente para que as mulheres saibam reconhecer quando são vítimas de assédio; por outro, a sensibilização dos homens. “E é mais fácil trabalhar a educação de quem ainda está na escola do que as pessoas que já estão na fase adulta.”
Por meio do projeto Dialogando nas Empresas, também do MPCE, a promotora teve a oportunidade de conversar com muitos trabalhadores sobre assédio — a maioria do público masculino. “Nós tentamos levar uma mensagem de reflexão e ressignificação. A maioria fica muito silenciosa, fica refletindo… Poucos integram e perguntam”, pondera.
“Existe uma surpresa muito grande”, confirma Caio César, pesquisador em questões de gênero e masculinidades. “Muitos homens negam (que cometeram assédios) porque são cínicos mesmo, mas muitos negam porque acham que é normal. E quando ele se dá conta, existe uma culpa muito grande.”
“Os homens são os pontos principais da violência, sejam eles causadores ou vítimas”, resume o pesquisador de masculinidades Caio Cesar. Ainda que a discussão sobre assédio tenha protagonismo feminino, a verdade é que o cenário só irá mudar quando os homens se incluírem no debate. “Eu digo com absoluta certeza, sem os homens se inserirem nesse debate de maneira plena, a gente não vai dar conta do assédio sexual.”
Isso porque o assédio surge de dois pontos basilares da construção social do homem: a violência e a sexualização dos afetos. A “caixa do homem”, como diz Caio, é um conjunto de regras sociais que devem ser seguidas para que a pessoa seja considerada um homem de fato.
Ele precisa ser provedor, ser o chefe, nunca estar errado, nunca ter medo… E na supressão dos sentimentos e das preocupações, o único recurso encontrado por eles é a violência. Meninos aprendem a “brincar de brigar” da mesma maneira que aprendem a sexualizar qualquer relação de carinho e amor.
Nesse caso, eles aprendem a ser carinhosos e gentis apenas com quem têm interesse sexual. Por isso, eles “não podem” abraçar amigos, dizer que os amam ou achar outro homem bonito — na lógica da caixa do homem, isso significaria ter desejo sexual por outro rapaz, ou seja, ser gay. E é também dessa linha de raciocínio que homens não conseguem ver mulheres como outra coisa além de um objeto de desejo sexual.
Dessa mistura de violência e falta de contato com o amor para além do sexo, surge o ambiente perfeito para o assédio, impulsionado por uma cultura de silenciamento masculino. “Essa ‘caixa do homem’ prejudica porque você não pode expressar o que você sente”, explana Caio. “E aí os homens falam sobre tudo, menos sobre eles. O silêncio que os homens têm é perigoso, porque eles cometem violência com eles e com os outros a partir disso.”
Aqui, o pesquisador reforça como toda estatística de violência tem a figura masculina como protagonista. São os homens que mais matam mulheres, mas também são os homens que mais morrem em outros contextos e os que mais se suicidam. “E isso não é para dizer que os homens são as vítimas, mas para mostrar que a caixa os encaminha para a violência em qualquer cenário”, frisa o pesquisador.
Na experiência de Caio como facilitador de grupos de homens, ele percebe a participação masculina na discussão sobre assédio crescendo, mas muito timidamente e em uma bolha social específica. Geralmente, eles chegam aos grupos por ordem das esposas e namoradas, ou então porque viraram pais e se viram perdidos, sem referências de paternidade e amor.
“A parte mais importante é olhar para si. Homens geralmente chegam muito perdidos, e a parte mais difícil é eles realmente chegarem a esses grupos”, pondera. Infelizmente, da mesma maneira que a pauta de masculinidades avança no lado benéfico à convivência com as mulheres e ao combate ao assédio, avança também no conservadorismo.
O movimento Red Pill — que reforça conceitos relacionados à submissão da mulher ao homem e propagam misoginia e machismo — surgiu justamente como uma reação à expansão de movimentos feministas, negros e LGBTQIA+. “É uma disputa mesmo, a gente sempre tem que disputar os homens. No X (ex-Twitter, suspenso no Brasil), esse movimento Red Pill foi totalmente abraçado… A gente precisa chegar nos homens mais cedo.”
Tanto o pesquisador, quanto a promotora defendem políticas públicas que levem a discussão de gênero (masculino e feminino, diga-se) para as escolas. A ideia é garantir que desde jovens eles tenham acesso à informação e à reflexão sobre assédio sexual, parecido com o programa Educar para Prevenir do MPCE. Nele, promotores levam às escolas de ensino fundamental e médio e às universidades debates sobre o assunto.
“Mas a gente não chega nesses meninos com volume necessário”, ressalta Caio. “Nas escolas, os adolescentes são os mais vulneráveis, os mais machistas e homofóbicos… Mas também são os mais abertos a falar sobre isso.”
por Marina Solon*
Vivemos em uma sociedade patriarcal organizada de forma que os homens ocupem os centros de poder, decisão e autoridade enquanto às mulheres cabem as margens, o silêncio e a subserviência. Essa configuração social tão centrada na figura masculina permite que homens dominem mulheres em todas as ordens, uma vez que as lentes do poder patriarcal os fazem ver as mulheres esvaziadas de vontade e autonomia.
A ordem social patriarcal quer as mulheres silentes e subservientes, comportamentos que possibilitam e potencializam o poderio ilimitado dos homens. A dominação masculina está no âmago da sociedade de forma que atos de violência contra as mulheres se naturalizaram na paisagem social.
Prova disso é que rotineiramente denúncias a atos de assédio sexual trazem consigo questionamentos de se a vítima não era na verdade a culpada e provocou toda a situação que a molestou. Nem mesmo quando há provas tais como fotos, vídeos e testemunhas oculares, há a certeza de que os casos de assédio sexual denunciados terão a prevalência da justiça em favor da mulher.
Isso porque cada ato violento contra as mulheres se baseia no poder masculino, um pensamento estrutural fundante de toda nossa cultura social. Para que o cenário mude é preciso transformar completamente o entendimento sobre qual o papel de homens e mulheres na sociedade. É esse o principal esforço dos movimentos feministas: fazer compreender que as relações desiguais de poder em que homens dominam mulheres abrem espaço para diversas violências e apontar a equidade entre eles como rota de saída dessa construção.
Entender e modificar esse arranjo social é a única via de retração de casos de assédio sexual. Enquanto mulheres forem tidas como vazias de vontade e liberdade, incapazes de dizer “sim” e “não”, sempre à mercê do desejo e dominação dos homens, a violência sexual fará parte das nossas rotinas.
*Marina Solon é jornalista e doutoranda em Comunicação pela UFC pesquisando violência contra a mulher
"Oi, eu sou a Catalina, repórter do OP+. Na sua opinião, o que segue impulsionando os casos de assédio no Brasil?"