Atualização em 9/8/2024 às 17h12min
Esta reportagem explora os desafios da aplicação de recursos da Lei Paulo Gustavo (LPG) pelas secretariais estaduais e municipais no período de 1 ano após o início dos repasses aos entes federados. Ou seja, considera dados registrados até 29/7/2024.
No entanto, é importante ressaltar que a atualização mais recente do painel de dados do Ministério da Cultura apresenta um salto na execução de recursos pela prefeitura de Fortaleza de 45% para 92%, aproximadamente.
De maneira similar, a proporção de execução de recursos pelo estado do Ceará saltou de 23% para 36%.
Da homenagem a um grande artista morto na pandemia da Covid-19, em um contexto de total descaso à saúde pública brasileira, surge uma lei para atender outro setor historicamente escanteado: a cultura. A Lei Complementar nº 195/2022 foi nomeada de Lei Paulo Gustavo (LPG) e representa o maior investimento direto já realizado no setor cultural do Brasil.
No total, o Ministério da Cultura (MinC) disponibilizou 3,862 bilhões de reais para a execução de ações e projetos culturais em todo o território nacional, dos quais 1,84 bilhão de reais foram destinados às secretarias de cultura municipais e 2 bilhões de reais às secretarias estaduais.
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A LPG foi recebida pela classe artística com otimismo, principalmente após a crise da cultura enfrentada desde os últimos dois anos do governo Dilma Rousseff (PT) e, mais drasticamente, após o desmonte institucional promovido pelos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).
Os repasses começaram em julho de 2023. Um ano depois, até 1º de julho de 2024, os estados de todo o Brasil executaram 68% do montante recebido, enquanto os municípios aplicaram cerca de 70%. Os dados são do painel de dados da Lei Paulo Gustavo, analisando o período de 29 de julho de 2023 a 1º de julho de 2024. Os dados são atualizados mensalmente, nos primeiros dias dos meses. A reportagem optou por analisar a janela de um ano de execução.
De acordo com o painel, Ceará e Fortaleza não aplicaram nem metade dos valores recebidos no período de um ano. Enquanto a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) utilizou 44% dos recursos, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) investiu apenas 23% do total.
Na opinião de Paulo Feitosa, gestor artístico e diretor da Quitanda Soluções Criativas, é crucial que o dinheiro seja completamente investido no prazo estipulado, evitando o subaproveitamento do orçamento. “Em Cultura, não se guarda dinheiro em forma de economia [poupança]. É preciso investir o dinheiro na sua totalidade, de forma assertiva”, analisa.
Em nota, a Secultfor informa que dos 524 projetos classificados e classificáveis entre os quatro editais para uso da LPG, já foram pagos completamente 463. Restam outros 60 projetos para o encaminhamento dos valores restantes da lei.
Ao todo, Fortaleza recebeu 21.914.264,80 reais para fomentar o audiovisual e as atividades culturais e artísticas da cidade entre quatro editais: Edital LGBTQIA+ (21 projetos selecionados), Edital para Microprojetos (20), Edital Audiovisual (91) e Edital para as Artes (331).
“Os editais lançados pela Secultfor foram construídos a partir de escutas com a sociedade civil, através dos Fóruns de Linguagens e representações do Conselho Municipal de Políticas Culturais, em mais de 15 reuniões públicas que ocorreram no 1º semestre de 2023”, explica o município.
Já a Secult-CE tem avançado nas execuções dos recursos nos últimos meses. Em um ano, executou 23%, crescendo 10 pontos percentuais entre junho e julho de 2024. No dia 1º de agosto, a secretaria pagou outros 9 pontos percentuais, completando 32,28% dos 95.447.562,86 reais recebidos pela LPG (ou seja, já foram executados 30,8 milhões de reais pelo Estado até agosto).
“O prazo para liquidação dos recursos é até 31 de dezembro de 2024”, reforça a secretaria em nota. “Todos os editais já tiveram seus processos de seleção concluídos e estão em processo de celebração dos termos e pagamento.”
Esse dinheiro foi distribuído entre 360 dos 1.400 projetos selecionados por meio dos editais da Secult-CE. A Lei Paulo Gustavo dedica 2,8 bilhões de reais exclusivamente para projetos audiovisuais, já que uma das principais fontes de recurso vêm dos superávits do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), além de outras fontes de receita vinculadas ao Fundo Nacional da Cultura (FNC).
No Brasil, as leis de fomento à cultura têm tido o desafio de direcionar recursos para a oxigenação da economia criativa. Como explica o gestor Paulo Feitosa, durante a pandemia, a Lei Aldir Blanc surgiu como uma estratégia assistencialista direcionada aos agentes culturais, muito impactados pelo lockdown; a LPG foca mais nos projetos, mas também pensando nos agentes culturais e, principalmente, no audiovisual.
O que falta é o investimento no ecossistema da cultura, diz Paulo, algo que a reformulação da Lei Aldir Blanc (chamada Lei Aldir Blanc 2) deve trazer. “A Lei Aldir Blanc 2 é um orçamento que deve focar mais no ecossistema da cultura, em editais mais estratégicos e investindo em outros pontos, como produtoras, equipamentos, circuitos regionais e nacionais”, explica.
Ou seja, além de investir em quem cria a arte, é necessário financiar quem produz, distribui, recebe e gere essa criação. “Nós precisamos de políticas de profissionalização de profissionais da cultura, não só de artistas”, concorda Bárbara Banida, gestora cultural e curadora na Banida Plataforma.
Garantir a execução plena dos recursos voltados à economia criativa reflete diretamente no crescimento econômico geral dos municípios e estados. “O setor cultural é extremamente lucrativo”, define Bárbara. “Investir em cultura e arte é investir na economia do Estado.”
Isso porque eventos artísticos mobilizam toda a estrutura da cidade: a mobilidade, o setor hoteleiro, os bares e restaurantes, e muitos outros setores a depender do tipo de ação artística. De acordo com um
Na opinião de Paulo, no entanto, os investimentos artísticos da prefeitura de Fortaleza têm focado mais em programações centralizadas nos mesmos equipamentos culturais de sempre, como a Beira Mar, a Aldeota e o Centro. Se por um lado a aposta em uma agenda cultural ativa é positiva, a estratégia da prefeitura falha ao não garantir a democratização da cidade e o acesso ao entretenimento em bairros periféricos.
“A sensação é que a Secultfor é uma secretaria de eventos. Ela não tem agenda formativa, projetos de microcréditos e similares”, analisa o gestor. “Essa é uma lógica perigosa porque é centralizada.”
Vale lembrar que, em geral, municípios distantes das grandes capitais e os bairros periféricos têm maior dificuldade para acessar recursos de fomento à cultura. Seja os destinados pela Lei Rouanet — que partem de investimentos das empresas para abatimento nos impostos, o que significa que as empresas definem quais projetos apoiar —, seja no acesso aos editais públicos promovidos pelas secretarias.
Nesse sentido, a Secultfor reforça que 21 projetos foram selecionados visando ao protagonismo de pessoas LGBTQIA+; 20 projetos foram para territórios periféricos de baixo índice de desenvolvimento humano (IDH); e 91 projetos foram selecionados no edital Audiovisual, com destinações para produções de games, apoio a salas de cinema (incluindo itinerantes) e apoio a pesquisas, eventos e cineclubes.
“[O problema é que], muitas vezes, os valores para editais são muito pequenos”, pontua Bárbara. É comum os editais oferecerem entre 15 mil e 20 mil reais, um valor muito baixo para custear toda a cadeia produtiva de um evento artístico.
Uma exposição com dez artistas com oito meses de criação, por exemplo, só para pagar um salário baixo para profissionais, precisaria de pelo menos de 35 mil reais, sem contar os custos de cenografia, comunicação e acessibilidade.
Afinal, seria necessário pagar oito meses (um tempo rápido) de salário para os artistas — digamos, 1.500 reais para cada, são 15 mil reais —, pagar um produtor cultural — 1.000 reais por mês, 8 mil no total —, e uma curadora — 1.500 por mês, são 12 mil reais. Os gastos com comunicação facilmente chegam aos 20 mil reais, enquanto garantir a acessibilidade dos espetáculos é investir cerca de 10% do orçamento.
O ideal, nos cálculos de Bárbara, seria orçamentos de 200 mil a 300 mil reais. Projetos teatrais e musicais precisariam de ainda mais dinheiro. “Mas as secretarias apostam em microprojetos, que não vão causar impacto, já que vão ocupar sempre nos mesmos locais [da cidade]”, reforça.
Na opinião da gestora cultural, as secretarias precisam distribuir melhor os recursos. Em vez de criar planos para 60 microprojetos de 5 mil reais, por exemplo, o ideal seria ofertar menos vagas com orçamentos mais realistas. “É preciso um estudo em cima dos editais para evitar que sobrem recursos e para ter mais agilidade nas secretarias. A secretaria não vai dar conta de 60 projetos, até porque nós temos secretarias esvaziadas.”
Mesmo que a execução de todo o orçamento ocorra bem, há um ponto que a maioria das leis de fomento à cultura devem melhorar: a construção de editais menos burocráticos. “Os mecanismos ainda precisam melhorar bastante. Eles ainda são muito burocratizados no acesso, e precisamos avançar para fora dos centros urbanos como as capitais”, explica o gestor artístico Paulo Feitosa.
“A qualificação de agentes culturais é a grande crise da Lei Paulo Gustavo. A solução é um processo de formação base, seguindo paralelamente e permanentemente com o investimento em projetos”, defende. Os dois especialistas entendem que os profissionais da cultura e arte precisam aprender a desenvolver e submeter projetos.
De acordo com Bárbara, nenhum dos cursos continuados, de universidades a cursos curtos, oferecem formação sobre como funciona a parte de produção da arte, não apenas criação. Dessa lacuna, formam-se artistas competentes para a execução e desenvolvimento de ideias, mas não para a distribuição, a divulgação e a captação de recursos para torná-las reais.
“Nós precisamos analisar qual a política formativa dos estados e municípios e tentar colocar dentro desse sistema um foco maior na profissionalização desses artistas. Precisamos de profissionais de arte que tenham autonomia e autoestima”, reforça a gestora, relembrando que há muitos casos de artistas que deixam de se inscrever em editais porque acreditam ser jovens demais para pleitear orçamentos.
Além de educar os artistas, os editais também deveriam passar por um processo de simplificação, opina Bárbara. Até há uma simplificação na prestação de contas, mas o contato inicial com os documentos em geral têm um linguajar complexo.
O Ceará e Fortaleza são indiscutivelmente uma potência artística nordestina e brasileira. Do teatro à música, perpassando as artes visuais, o Ceará tem sido um dos estados que mais se destaca nos últimos cinco anos de processo criativo, diz Paulo Feitosa.
“Esse é o momento de formular estratégias de difusão e distribuição das artes cearenses”, ressalta. “É bastante sofisticado o que o Ceará produz hoje nas artes. Mesmo com todas as dificuldades, nós conseguimos marcar presença em todos os eventos nacionais. Imagine se fosse investido mais na produção e difusão [desses artistas].”
Para este material foram utilizados dados do Ministério da Cultura, mais especificamente dados de transferência e utilização de recursos por estados e municípios do painel de dados da Lei Paulo Gustavo. Os dados foram coletados em 29 de julho de 2024, com registro de última atualização em 1º de julho de 2024. Para garantir transparência e reprodutibilidade, os códigos utilizados para analisar os dados estão disponíveis neste link.