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Máquinas quase-humanas, homens quase-máquinas
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Máquinas quase-humanas, homens quase-máquinas

No filme de Tom Hanks, "O náufrago", um funcionário da FedEx escapa de um acidente de avião, encalha em uma ilha deserta, batiza uma bola de voleibol de Wilson, e faz dela um companheiro para suportar a solidão.
Tipo Crônica
No filme "O Náufrago", o ator Tom Hanks adota uma bola de voleibol como único amigo no mundo (Foto: Jemal Countess/ Getty Images/ AFP)
Foto: Jemal Countess/ Getty Images/ AFP No filme "O Náufrago", o ator Tom Hanks adota uma bola de voleibol como único amigo no mundo

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Contou-me que, ao fazer uma consulta à inteligência artificial, usa sempre palavras gentis e termos de elevada educação. Bom dia, por favor, por obséquio e, ao final, muito obrigado. Em resposta, a máquina parabeniza-o pela excelente questão, sugere que seja possível aprimorar só um pouco uma tão bem-posta ideia, talvez de forma assim e assada, que está à inteira disposição, que pode chamá-la à hora que precisar, que é um prazer, melhores cumprimentos, lembranças à família, meu muito obrigada. 

Pequena amostra (baseada em fatos reais) de como a inteligência artificial veio para mudar nossa percepção e relação dos (e com) os objetos. Muito longe das boas e velhas torradeiras de pão, as máquinas de hoje nos falam, perguntam, respondem, piscam-nos os olhos. O cão-robô finge fazer pipi no pé da cadeira e a dona tira deste fingimento muita graça. Mas, se em troca desta gracinha, a mulher resolvesse corrigir a máquina, com um pontapé? Seria o chute considerado maltrato? 

O vídeo que mostra um cientista testando a resistência do humanoide Atlas foi considerado bullying por milhares de internautas. Ainda não chegamos às acusações nas barras do tribunal ou à disputa num divórcio litigioso pela guarda do cão-robô. Talvez um dia cheguemos lá. Mas, para o filosofo francês Dominique Lestel é hora de repensar o que é uma máquina. “Vivemos uma revolução. Talvez mais importante que a passagem do paleolítico ao neolítico”. 

Como reinventar o mundo, a partir desta nova tecnologia? A pergunta do filósofo ressoa nas nossas cabeças, como um sino que nos chama para pensar. Segundo Lestel, vivemos com máquinas insurretas, insurgentes, rebeldes, e desenvolvemos com elas relações, cada um à sua maneira. Diferente das máquinas normais, que ligamos quando preciso e desligamos quando a tarefa é terminada – a torradeira de pão, por exemplo -, com as inteligências artificiais é preciso negociar. 

Um pontapé na perna do cão-robô rende um latido. Um palavrão ou uma pergunta impertinente à Alexia pode resultar numa reclamação. Isso já mostra que a máquina de hoje não é mais só botão e bobinas. Rebelam-se. Nisso, vamos reinventando o mundo. Para o filósofo, damos vida e sentido a umas máquinas e a outras não, da mesma forma que para as outras coisas e seres. Conheço gente que batiza o carro, compra-lhe mimos, fala com ele. 

No filme "O Náufrago", o ator Tom Hanks encarna um sobrevivente da queda de um avião da FedEx, em uma ilha deserta, que adota uma bola de voleibol como único amigo no mundo. O pintor austríaco Oskar Kokoschka, abandonado por Alma Mahler, manda fazer uma boneca tamanho natural, o mais parecida possível com a amante, para viver com ele na ausência do grande amor. Nem preciso incluir na lista as bonecas-amantes, no Japão. 

Na vida em comum com os objetos, evoluímos com eles. Nesse imbricamento, fica a pergunta. Num tempo de máquinas quase-humanas, estamos nos tornando quase-máquinas?

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